3 de maio de 2012

KANA SEKU KA TA DOBRADU - cronices crónicas

Alguns dos termos mais recorrentes nos discursos de quaisquer políticos, e também de comentaristas, jornalistas e críticos sociais: mudança de mentalidade, engajar para a mudança, encarar a responsabilidade (?), essas geralmente são as condições sine qua non que se apresentam para acontecer o desenvolvimento sustentável (termo emprestado de políticos europeus cujo significado parece que nem mesmo muitos deles entendem).

Simplifica-se assim os problemas do país nesta solução: mudar a mentalidade, o que só se pode conseguir pelo engajamento, porque hoje há a globalização e todos são responsáveis, devendo acompanhá-la para presidir a um desenvolvimento sustentável. Bonitas palavras para formar um conjunto, entretanto de tão batidas soam a oco, acabando por erroneamente parecer sem alma. A culpa não está, no entanto, no conjunto, mas naqueles que o entoam. Adolf Hitler já dizia: não tomem o povo por mais estúpido do que é. Acreditam mesmo que acreditamos que repetir esta novena vai mudar o país?

Eu concordo que seja necessário mudar a mentalidade, aliás, o passo mais básico de qualquer mudança passa por aí, mas não é falando constantemente disso que ela vai acontecer. Se se quer mudar a mentalidade tem de se apresentar alternativas ou indicações para o que se vai mudar, não é só falar e esperar que a mentalidade mude por si só.

Sociólogos competentes poderiam apresentar listas de plausíveis soluções para essas mudanças se as mentalidades dos governantes fossem bastante mudadas para pedir um estudo especializado, mas está-se muito mais ocupado a falar de mudanças do que a agir nesse sentido.

Não sou sociólogo, mas acredito ser competente, significando que pelo menos metade das propostas que vou apresentar poderá ser correcta. Porém, não se espere que em apenas uma página apresente infalíveis soluções para décadas de problemas, pelo que vou passo a passo apontar o dedo para os problemas.

Para começar, vou falar de um ponto.



KANA SEKU KA TA DOBRADU - Os Nossos Contos

A nossa corrupção mental começa no berço, ou então (para os que acharem isto muito precoce), na infância. Somo aleitados com contos maliciosos, sem propósitos morais, com a única finalidade de mostrar que o mundo é corrupto e vil e a melhor forma de sobressair é meter os outros em alhadas, mesmo que não venham daí nenhuns benefícios. (Encontram-se, é certo, contos excepcionais, que vêm imbuídos de moral, mas quantificando os nossos contos, vê-se que são poucos, quase inexistentes, sem dizer que não são populares).

O maior herói dos contos infantis é o Djon Bulidur. Características: é tão malcriado e desordeiro que até chega a percorrer o mundo todo à procura de quem é melhor que ele nessa arte (ou devia ter dito pior?), entretanto apresenta ares de um menino adorável, visto que conquista sempre a simpatia e a confiança daqueles com quem contacta. Os seus grandes feitos, entre outros, foram: matar uma criança e dá-la de comer a um pássaro (quando a ordem era para fazer o contrário), queimar a casa de uns casal de velhinhos que o abrigaram, partir as asas de um pássaro que lhe deu boleia, queimar os testículos de um benfeitor seu e levá-lo a matar o próprio filho quando este tentou vingar-se dele.

Tem outra versão de Djon Bulidur, sendo que para este o apelido bulidur não significa necessariamente brigão, agitador e desordeiro (bully), mas esperto e desembaraçado, todavia duvido que este seja o mesmo Djon que o primeiro, porquanto este é correcto, íntegro e inteligente, caçula de um par de gémeos, Pedro e Paulo (dois irmãos semi-estúpidos), e aquele é filho único (não sei precisar se órfão ou se fugido de casa).

Entretanto, a contraparte de Djon Bulidur, o malcriado, nas fábulas, é a Lebre. Uma criatura maliciosa e odiosa com que todos simpatizam porque, supostamente, é inteligente e sabe safar-se, perdendo apenas pela Tchoca (a perdiz). A Lebre engana o pobre tapado do Lobo, leva-o a sofrer inúmeras provações, inclusive enganou a própria Morte fazendo-lhe cobrar ao Lobo, tudo isso para mostrar o quanto é esperta e inteligente, quando na verdade é apenas má e o pobre Lobo é que é crédulo. E ao Lobo, cujas características principais são a estupidez e a gulodice, nunca correm bem as coisas, acaba sempre tramado e gostamos quando isso acontece porque ele é tolo e fraco, ou pelo menos assim o pintam.

A diferença entre os nossos contos e os contos europeus encontra-se fundamentalmente no facto de estes tentarem atribuir alguma moral à história, moldando o espírito das crianças desde cedo para o correcto, enquanto os nossos parecem mostrar apenas a mesma coisa: tramar os outros. Até que podia ser legítimo o ensino se fosse: tramar para não ser tramado – remetendo ao Bugs Bunny, - ou esteja atento aos tramadores para inverter o jogo – Tom & Jerry - mas infelizmente é: tramar apenas por tramar – Itchy & Scratchy d’Os Simpsons.

É possível alegar que os contos não espelham o espírito de um povo e, sendo assim, não tem fundamento o que aqui digo, assim como é possível dizer que os filhos não tendem a seguir a religião dos pais ou a adorar a sua equipa de futebol. Mas, na verdade, como diz uma publicidade da Rádio Clube Português: o que pensa começa no que ouve, as crianças são recipientes ou massas moldáveis cujas prováveis formas finais são aquelas que lhes damos nessa altura. Aliás, como diz Kant: A imensa maioria da humanidade considera a passagem à maioridade difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão dela, ou mesmo até os adultos deixam-se guiar porque não querem a responsabilidade de pensar por si.

Agora, confrontando os nossos contos com a situação do nosso país e com a forma de agir dos que estão à cabeça do país e dos que se esforçam para lá chegar não será muito difícil estabelecer pontes alegóricas. Ou seja, um bom exercício era trocar as personagens dos contos pelas identidades públicas, ou mesmo por algum vizinho com quem não nos damos bem, ou usar essas personagens na situação real... e perceber-se-á como esta minha observação é justificável. Daí passo para a pergunta: por que não contamos outras histórias às nossas crianças?




Artigo publicado em 2010, no Jornal Kansaré.

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