23 de abril de 2012

A SOMBRA - HANS CHRISTIAN ANDERSEN (parte 1)

Quando criança, eu não gostava muito de Hans Christian Andersen, porque os seu contos eram, para mim, cruéis e demasiado trágicos, e considerando que eu estava mais habituado aos contos de faz-de-conta de Perrault, Grimm e companhia, e aos seus finais felizes e nada realistas, não conseguia atinar com as razões dos contos de Andersen serem tão lúgubres. 

Levei metade da minha vida até começar a perceber as razões, ou as supostas razões de Andersen, e começar a ver que os seus contos afinal espelham mais a realidade do que o ideal cor-de-rosa com que as crianças são alimentadas, como uma forma de as proteger da dureza do mundo real; embora os contos de Andersen manifestem um determinado tipo de esperança no final que nos leva a achar que tudo acabou bem (alguém se lembra do final d' O Labirinto de Fauno '?'), eles ainda continuam a mostrar a moral do nosso mundo, e manifestam um teor filosófico, podendo desta forma servir tanto para ilustrar adultos como crianças, sem perder o encanto e a magia. Os contos de Andersen, no entanto, apesar de gostar, deles, não os recomendo a crianças de tenra idade (pelo menos se não na versão Disney). 

Como quero falar aqui de um conto em particular, A SOMBRA, vou separar este post em duas partes, esta primeira servindo de introdução e apresentação do referido conto, que vou em seguida mostrar (está em português do Brasil, mas who cares?), e a segunda vai tentar dissecar o conto em si, e, mais ou menos, o grosso do trabalho de Andersen.



A SOMBRA
Hans Christian Anderson


Nos países quentes, o sol possui um outro ardor que o nosso não tem. As pessoas tornam-se acajus. Nas regiões mais quentes ainda, chegam a ser negras. 


Mas foi justamente para um desses países cálidos que um sábio de nossos países frios resolveu ir. Imaginava que poderia circular por ali como em nossa pátria; mas logo se desiludiu. 

Assim como todas as pessoas razoáveis, ele era forçado a ficar em casa, com as venezianas e as portas fechadas durante o dia inteiro. Dir-se-ia que todos dormiam na casa, ou que esta não era habitada. Além do mais, a rua onde ele morava ficava situada de tal maneira, que desde manhã o sol batia na casa toda. Era verdadeiramente insuportável. 

Este sábio dos Países frios era um homem jovem e inteligente. Parecia-lhe estar sobre um fogo em brasa. Como sofria. Emagrecia ao extremo, mesmo sua sombra diminuía. Estava bem menor do que em sua pátria. Estava ficando assim por causa do sol. Só se animava à noite, quando o sol desaparecia. Então era um prazer vê-lo e à sua sombra. 

Assim que ele levava a luz para o apartamento, a sombra se alongava na parede até o teto. Crescia e se estendia a fim de refazer as forças. O sábio ia para a varanda e assim que as estrelas luziam no céu claro, ele era inundado de uma vida nova. Em todas as varandas rua – e nos países quentes quase todas janelas possuem a sua varanda – as pessoas se mostravam. Pois é preciso tomar ar, mesmo quando se está acostumado a ser acaju. 

A vida se manifestava em todas as formas. Muitas pessoas andavam pelas ruas; levavam para fora as mesas e cadeiras; havia luzes por todos os lados. 

Conversavam e cantavam; havia uma multidão de transeuntes e de carros. Cavalos e mulas passavam tilintando, pois possuíam campainhas. 

Enterravam seus mortos em meio aos cânticos; as crianças faziam barulho; os sinos das igrejas tocavam. Havia vida e movimento nas ruas. Somente a casa que ficava em frente à do sábio estrangeiro permanecia silenciosa. 

No entanto, ali devia habitar alguém; pois na varanda havia flores que aproveitavam esplendidamente o calor do sol, o que não seria possível se não fossem regadas, o que queria dizer que alguém as regava. 

Forçosamente morava alguém naquela casa. Além do mais, a porta se abria também à noite; mas o interior era sombrio, pelo menos no primeiro aposento, pois ouvia-se música vinda do fundo. Esta parecia ao sábio incomparavelmente bela. 

Talvez fosse fruto da sua imaginação: ele acharia tudo maravilhoso nos países cálidos, se o sol não fosse tão forte. O senhorio do estrangeiro dizia não saber quem alugara a casa em frente: jamais se via alguém. Quanto à música, na sua opinião, era muito enfadonha; achava que uma criatura exercitava uma peça muito difícil para ela, e, já que não conseguia tocá-la satisfatoriamente, tornava a recomeçá-la. 

- Acabará conseguindo, não há dúvida. 

Mas por mais que tocasse, não o conseguia. Certa noite o estrangeiro acordou. Ele dormia perto da porta aberta da varanda, da qual pendia uma cortina que balançava ao vento. Pareceu-lhe que da varanda em frente vinha uma luz extraordinária. No meio das flores que brilhavam com as cores mais magníficas, encontrava-se uma jovem amável e bonita. Parecia até que ela também brilhava. Ele ficou completamente cego; lá não havia nada de extraordinário; ele abrira demais os olhos e acabava de sair do sono. De um salto, ele abriu a cortina. Mas a moça desaparecera e, com ela, toda a luminosidade. As flores não – brilhavam mais e só tinham a sua beleza costumeira. 

A porta estava encostada. E do fundo do apartamento vinha uma música agradável, suave, própria para despertar os mais doces pensamentos. Era um verdadeiro encantamento. Quem moraria ali? E onde ficava a entrada? No rés-do-chão as boutiques se seguiam e era impossível passar por ali constantemente. Certa noite, o estrangeiro estava também na sua varanda. Atrás dele, em seu quarto, a luz estava acesa. E assim, era natural que sua sombra se desenhasse na parede em frente. Sim, ela estava lá, na varanda, no meio das flores, e de cada vez que o estrangeiro fazia um movimento, a sombra fazia outro correspondente. 

- Creio que minha sombra é tudo o que possa existir de vivo lá dentro – disse o sábio. – Como é ela graciosa assim no meio das flores! A porta não está senão encostada. Ela poderia ser bem sabida para entrar, examinar o que há no interior, e, ao voltar, contar-me o que viu. Sim, sim – disse ele brincando. – Você bem podia prestar-me esse serviço. Faça o favor de entrar. Vamos, você não quer ir? Debruçou-se sobre a sua sombra que lhe respondeu: - Vá! mas não fique muito tempo. 

O estrangeiro levantou-se. Na sua frente, na varanda, sua sombra levantou-se também. Ele virou-se e a sombra fez o mesmo. E se alguém prestasse atenção, veria a sombra passar pela porta entreaberta da varanda da frente, justamente no momento em que o estrangeiro penetrava em seu quarto, deixando cair a cortina atrás dele. 

Na manhã seguinte, o sábio saiu a fim de tomar café e comprar os jornais. 

- Que é isso? – gritou ele assim que ficou sob o sol. - Eis que eu não tenho mais sombra! Então ela partiu ontem à noite e não mais voltou. Isso é muito estranho! 

Não era tanto a perda da sombra que lhe trazia tanto mau humor. Mas na terra dele, nos países frios, todos conheciam a história do homem que perdera a sombra. Atualmente, se ele voltasse ao seu país e contasse sua aventura, iriam chamá-lo de plagiário. E isso o contrariava. Eis por que resolveu não dizer nada, o que era muito sensato. 

À noite ele voltou à sua varanda; colocara a luz bem atrás de si, sabendo que a sombra exige que seu dono esteja entre ela e a luz. Mas não conseguiu fazê-la voltar. Abaixou-se e levantou-se. Não possuía mais sombra, não apareceu nenhuma. 

- Hum! hum! – fez ele. O que não adiantou de nada. 

Era verdadeiramente enfadonho. Felizmente tudo passa depressa; no fim de oito dias, ele se deu conta, para grande alegria, que, assim que chegava ao sol, uma nova sombra começava a estender-se aos seus pés. Três semanas mais tarde, ele já possuía uma sombra bem razoável. 

E quando voltou para o seu pais, em direção ao Norte, ela crescia à medida que ele viajava, crescendo tanto, que dentro em breve alcançou a metade do seu tamanho. O sábio voltou para casa e escreveu sobre o belo, a verdade e o bem no mundo. Passaram-se anos. Um longo tempo se passou. 



Uma noite em que estava sentado em seu apartamento, bateram ligeiramente na porta. 

- Entre – disse ele. 

Mas não entrou ninguém. Então ele mesmo foi abrir. 

Na sua frente estava um ente magro ao extremo, que lhe causou uma estranha impressão, mas que, ao examiná-lo, o sábio viu que estava elegantemente vestido. Devia ser alguma pessoa de bem. 

- A quem tenho a honra de falar? perguntou o sábio. 

- Ah! bem que eu duvidava que você não me reconheceria – disse o homem elegante. – Tornei-me muito material. 

Ganhei carne e ossos. E, sem dúvida não pensava em me ver em tão bom estado. Não reconhece a sua velha sombra? Certamente não esperava que eu voltasse. Tive uma sorte extraordinária, depois que o deixei. Consegui meios sob todos os pontos-de-vista. E tive a possibilidade de me livrar da minha servidão. Ao mesmo tempo fez soar uma quantidade de berloques preciosos que pendiam de seu relógio e passou a mão por uma corrente de ouro maciço que trazia ao pescoço. Em todos os seus dedos diamantes lançavam chispas. E nenhuma dessas jóias era falsa. 

- Não, não posso acreditar! – disse o sábio. – Como é possível? 

- Não é muito comum, realmente disse a sombra. 

- Mas você também não é uma pessoa comum, e eu, sabe-o muito bem, segui-o desde a infância. Assim que me julgou bastante amadurecido para deixar-me só no mundo, segui a minha própria vida. Encontro- me numa situação das mais brilhantes. Mas uma espécie de nostalgia tomou conta de mim e a vontade de vê-lo mais uma vez antes da sua morte, pois você – é claro – vai morrer um dia. Além do mais, queria rever este país; sempre se ama a própria pátria. Sei que arranjou uma outra sombra. Tenho algo a pagar-lhe, ou a ela? Peço-lhe o favor de dizer-me. 

- Não! Então é você mesmo! – disse o sábio. – É maravilhoso. Nunca pensei que poderia ver novamente a minha velha sombra sob uma forma humana. 

- Diga-me o quanto tenho de pagar disse a sombra. – Não gosto de ter dívidas. 

- Como pode falar dessa maneira – disse o sábio. 

- Não se trata de dívida. Use a sua liberdade como todo mundo faz. Estou muito contente com a sua felicidade. Sente-se, meu velho amigo. e conte-me tudo o que lhe aconteceu e o que você viu nos países quentes na casa do meu vizinho da frente. 

- Contarei tudo – disse a sombra sentando-se – mas prometa-me em troca que não dirá a ninguém aqui, nesta cidade onde terá várias ocasiões de encontrar-me, que eu fui sua sombra. Estou pretendendo ficar noivo. Possuo o suficiente para manter uma família. 

- Pode ficar tranqüilo – disse o sábio. – Não contarei a ninguém quem você é na realidade. Prometo. Um verdadeiro homem só tem uma palavra. 

- Um verdadeiro homem só tem uma palavra – repetiu a sombra que era obrigada a se exprimir assim. 

Era realmente espantoso constatar como ele se tornara um homem perfeito. Seu traje negro era do tecido mais fino; usava botinas de verniz e um chapéu de coco elegante, sem falar nos berloques que já conhecemos, da corrente de ouro e dos anéis. Sim, a sombra estava impecavelmente trajada e é justamente isso que faz um homem. 

- Vou contar-lhe – disse a sombra pousando o mais forte que pôde o pé calçado de verniz sobre a nova sombra do sábio, que jazia à sua frente como um travesseiro, fosse por orgulho ou por querer descansar. 

A nova sombra, porém, quedou-se tranqüila: sem dúvida queria saber também como poderia livrar-se de seu amo. 

- Sabe quem morava na casa nossa vizinha? – perguntou a sombra. - O que há de mais belo; a poesia. Fiquei lá três semanas, as quais aproveitei como se tivesse vivido três mil anos, lendo todos os poemas e todas as obras dos sábios. Estou dizendo a verdade. Li tudo e aprendi tudo. 

- A poesia! – exclamou o sábio. - Sim, sim, ela vive solitária nas grandes cidades. A poesia vi-a um breve instante, mas dormia ainda. Ela estava na varanda, entrou pela porta e depois … 

- Depois eu fui até a antecâmara prosseguiu a sombra. – Não havia luz; reinava uma espécie de penumbra. Os aposentos numerosos estavam dispostos em fila e pelas portas abertas podia-se vê-los com um só olhar. Estavam tão claros como em pleno dia e a violência desse mar de luz certamente me teria matado, se eu me aproximasse da jovem. Mas fui prudente e soube o que fazer. 

- Que viu a seguir? – perguntou o sábio. 

- Eu tudo vi. Vi tudo e sei de tudo! 

- Como eram os aposentos lá dentro? interrogou o sábio. 

- Eram como na fresca floresta? Como uma santa igreja? As salas eram como um céu de estrelas, como quando se está nas altas montanhas? 

- Tudo estava lá – disse a sombra. Não entrei totalmente; permaneci na primeira peça, na penumbra, mas encontrava-me perfeitamente bem. Sei tudo e vi tudo. Eu estava na corte da poesia, na sua antecâmara. 

- Mas que foi que viu? Os deuses da antigüidade estavam nas grandes salas? Os antigos heróis e os combatentes? Crianças amáveis brincavam e narravam seus sonhos? 

- Vou contar-lhe e você vai compreender o que eu vi e o que havia para ver. Passando pelo outro lado, passaria pelos limites da humanidade. Eduquei-me, aprendi a conhecer a minha própria natureza e minhas relações com a poesia. Outrora, quando estava ao seu lado, eu não raciocinava. Desde que o sol nascia e se punha, eu me tornava bastante grande. 

Ao luar eu ficava do seu tamanho. Naquele tempo eu não conhecia a minha própria natureza; só percebi a sua essência na antecâmara da poesia: tornei-me um homem. Somente, como ser humano, envergonhava-me de sair como estava: faltavam-me roupas, sapatos, todo o verniz que dá significação à humanidade. 

Procurei um abrigo, e – posso confessar-lhe, pois que você não vai dizer a ninguém – encontrei-o nas vestes de uma cozinheira. A honesta mulher nunca soube da proteção que me deu. Parti naquela mesma noite. E corri para cá e para lá, na rua, sob o luar. Encostava-me nas paredes. Corri da direita para a esquerda, olhei pelas mais altas janelas dos apartamentos e sobre os tetos. Lancei um olhar até onde ninguém pode fazê-lo e onde ninguém me poderia ver. Afinal, o mundo é mau. 

«Não gostaria de ser homem, se não fosse admitido comumente que ser homem significa algo. Eu vi, em casa de homens e mulheres, nas casas de pais de crianças doces e angélicas, as coisas mais incríveis. 

«Eu vi, disse a sombra, o que ninguém deveria saber, mas que todo mundo precisava conhecer, a maldade de seus vizinhos. 

«O que eu teria de leitores se possuísse um jornal! Mas eu escrevi da mesma forma às pessoas interessadas. 

«O terror tomou conta de toda as cidades onde eu chegava. Como me temiam, comportavam-se corretamente para comigo. Os professores me elevaram à sua condição, os alfaiates deram-me roupas novas, de maneira que pude andar bem vestido. 

«Deram-me também dinheiro e as mulheres diziam que eu era lindo. Foi assim que me transformei no que sou hoje. Agora vou dizer-lhe adeus. Aqui está o meu cartão. Moro do lado do sol, e, quando chove, fico sempre em casa.» 

Depois disso, a sombra se foi. 

- Eis uma coisa notável – disse o sábio. 



Passaram-se alguns anos e a sombra voltou inopinadamente. 

- Como vão as coisas? 

- Ora! – respondeu o sábio – escrevi sobre a bondade, a verdade e a beleza; mas para isso só existe gente surda. Estou desesperado, pois isso me entristece muito. 

- Nunca me entristeço – respondeu a sombra. 

- É por isso que engordo, o que deve ser a finalidade de todo indivíduo razoável. Você continua a não entender o mundo. Acabará ficando doente. É preciso viajar. Vou fazer uma viagem neste verão. Quer me acompanhar? 

Eu gostaria muito de tê-lo comigo. Pagarei a viagem. 

- Você vai muito longe? – inquiriu o sábio. 

- Isso depende – disse a sombra. 

Uma viagem vai restabelecer-lhe as forças. Se vier como minha sombra, farei todos os gastos. 

- É uma loucura – disse o sábio. 

- Assim é o mundo – disse a sombra. E assim ficará. A sombra partiu sem dizer mais nada. 

O sábio não ia bem. Estava cheio de ansiedade e aborrecimento. O que ele dizia sobre a verdade, a beleza e o bem, era, para a maioria, o que são as pérolas para os porcos. Finalmente caiu verdadeiramente doente. 

- Você tem mesmo o ar de uma sombra – diziam-lhe os outros. 

E, a esse pensamento, o sábio tremia. 

- Você precisa mesmo viajar – disse a sombra quando foi visitá-lo. 

- Não há outro meio. Nós somos velhos conhecidos, eu o levo. Pagarei a viagem. Você poderá escrever mais tarde sobre a mesma e, ao mesmo tempo, ajudar-me-á a não me aborrecer. Quero ir para uma estação de águas: minha barba não cresce como deve. Também é uma doença, pois todos devem ter barba. Seja condescendente, aceite a minha proposta; viajaremos juntos. 

Partiram. Agora a sombra era o mestre e o mestre transformara-se em sombra. Viajaram juntos, de carro ou a cavalo, lado a lado, ou um atrás do outro, de acordo com a posição do sol. A sombra ficava sempre ao lado do seu mestre, sem que o sábio dissesse nada. Tinha muito bom coração, era doce e amável. 

Eis por que ele disse um dia à sombra: 

- Já que agora nós somos companheiros de viagem, e que, além do mais, estamos; ligados desde a infância, não poderíamos beber à nossa fraternidade? Nossa amizade ficará ainda mais sólida. 

- Você acaba de dar a sua opinião – disse a sombra, que agora era o mestre. – Falou com a liberdade do coração e eu farei o mesmo, já que é sábio, deve saber o quanto a natureza é caprichosa. Muitas pessoas não podem ouvir barulho de papel, outras ficam nervosas quando se arranha um vidro com um alfinete. Eu ficava assim quando era obrigado a tratá-lo como senhor. Veja que não se trata de orgulho, mas de sensação. Mas já que você não se incomoda, faço questão que, de agora em diante, me trate como senhor. 

E assim, o antigo mestre passou a ser tratado como servo. E o sábio, quisesse ou não, tudo suportava. 

No entanto, os dois chegaram à estação de águas. Muitos estrangeiros descansavam no local, e, entre eles, havia a graciosa filha de um rei, cuja doença consistia em ter uma vista muito aguda, o que não deixa de ser uma coisa séria. 

E assim ela logo percebeu que o recém-chegado não era uma pessoa igual aos outros mortais. 

– Ele está aqui para fazer crescer a barba, é o que dizem; mas eu vejo bem qual o verdadeiro motivo: ele não tem sombra. 

Teve um grande desejo de conhecê-lo; assim que pôde iniciou conversa com o estrangeiro, durante um passeio. 

Sendo a filha de um rei, ela não precisava usar de muitas cerimônias. 

- Sua doença – disse ela – consiste em que o senhor não pode projetar uma sombra. 

- Vossa Alteza Real – replicou a sombra – está melhorando muito. O mal de que sofria, de ter a vista muito aguda, desapareceu. Está curada: eu possuo, pelo contrário, uma sombra extraordinária. Não vê a pessoa que não deixa de me acompanhar? Os outros possuem uma sombra comum, mas eu não gosto do que é comum. Da mesma forma que alguns fazem seus servos se vestirem melhor do que eles mesmos, eu transformei a minha sombra em homem. Como pode ver, eu cheguei a dar-lhe até uma sombra própria. 

«Sem dúvida é uma fantasia dispendiosa, mas gosto de ter algo para mim só.» 

Como?, pensou a princesa. Estarei verdadeiramente curada? Esta estação de águas é certamente a mais proveitosa para o meu estado. A água deve ter virtudes milagrosas. Mas, de qualquer forma, não vou partir daqui, pois isto começa a ficar interessante. Gosto muito deste estrangeiro. Contanto que a sua barba não cresça! Senão ele iria embora imediatamente. 

A noite, na grande sala de baile, a filha do rei dançou com a sombra. Por mais leve que ela fosse, ele o era ainda mais; jamais ela vira um tal bailarino. Contou-lhe de onde vinha. E ele conhecia seu país; lá estivera, mas ela não se encontrava em casa. Ele olhara por todas as janelas, altas e baixas e observara tudo. 

Pôde assim responder à filha do rei e dar-lhe indicações que a deixaram estupefata. Devia ser o homem mais sábio do mundo. Levou a sua sabedoria em grande consideração. E quando dançaram uma segunda vez juntos, ela apaixonou-se perdidamente por ele, o que a sombra percebeu muito bem. Ao dançar novamente, ela esteve a ponto de confessar seu amor. Mas pensou um pouco em seu país, seu reino e em tudo aquilo que teria de governar um dia. Trata-se de um homem sábio, dizia ela para si mesma. Dança maravilhosamente bem. Mas o importante é saber se possui também conhecimentos fundamentais. Vou fazer-lhe um exame. Então ela começou a fazer-lhe as perguntas mais difíceis. Ela mesma não seria capaz de respondê-las. A sombra fez um gesto singular. 

- O senhor não poderá responder ­– dizia a filha do rei. 

- Mas eu sei o que me pergunta desde os tempos da escola – respondeu a sombra. – Chego até a pensar que minha sombra, que está encostada na porta, poderá responder. 

- Sua sombra! – replicou a filha do rei. – Eis uma coisa que seria admirável! 

- Não afirmo que ela o faça – continuou a sombra – mas acredito que sim. Há tantos anos que me acompanha e me ouve. Mas Vossa Alteza Real me permite dizer-lhe que ela tem o orgulho de passar por um homem e que, se estiver de bom humor – e ela deve estar para poder responder convenientemente – é preciso tratá-la como tal. 

- Gosto de um tal orgulho – disse a filha do rei. Foi reunir-se ao sábio, na porta, e falou-lhe sobre o sol e a lua, sobre o homem exterior e interior. E ele respondeu bem e inteligentemente. 

Como deve ser o homem que tem uma sombra tão sábia!, pensava ela. Será uma verdadeira bênção para meu povo e para o Estado se eu o tomar para marido. Vou fazê-lo. E suspirou. 

- Você tem um caráter nobre – disse a filha do rei. 

À noite, toda a cidade foi iluminada. O canhão troou e a filha do rei e a sombra acertaram tudo. Todavia, ninguém devia saber de seus planos antes que ela entrasse em seu reino. 

- Ninguém, nem mesmo a minha sombra – disse a sombra. Estava pensando em algo. 

Logo eles se encontraram no país da filha do rei. 

- Ouça, meu bom amigo – disse a sombra ao sábio: - Atualmente eu me tornei mais feliz e poderoso do que qualquer outra pessoa no mundo; e vou fazer por você algo de excepcional. Morará constantemente comigo no castelo, viajará em minha carruagem real e terá um grande ordenado anual. Somente é preciso que não diga a ninguém que é um homem; e, uma vez por ano, quando eu estiver sentado ao sol para que todos me vejam, você se deitará aos meus pés, como convém a uma verdadeira sombra. Confio-lhe que vou me casar com a filha do rei; o casamento será celebrado esta noite. 

- Não, isso é uma loucura! – disse o sábio. – Não quero e não o farei. Seria enganar o país inteiro, e, sobretudo, a filha do rei. Vou contar tudo: que o homem sou eu e que você é somente uma sombra que veste roupas de homem. 

- Ninguém vai acreditar – disse a sombra. - Tenha juízo, senão chamarei os guardas! 

- Vou procurar a filha do rei – disse o sábio partindo. 

- Também vou – gritou a sombra. – E você irá para a prisão. 

Foi o que aconteceu, pois os guardas lhe obedeceram, sabendo que a filha do rei o escolhera para marido. 

- Está tremendo? – perguntou a filha do rei à sombra que chegava. - Aconteceu alguma coisa? Não deve ficar doente justamente na noite de nossas núpcias. 

- Aconteceu-me a coisa mais espantosa que se poderia conceber – disse a sombra. – Imagine só – é verdade que um pobre cérebro de uma sombra não pode ser muito sólido – imagine: minha sombra enlouqueceu. Ela acha que sou eu e que eu sou a sua sombra! 

- É incrível! – disse a princesa. – Prenderam-na? 

- Sim, mas tenho medo de que nunca mais recupere a razão. 

- Pobre sombra! – replicou a princesa. – Deve ser muito infeliz. Seria uma boa ação, realmente, dispensá-la da sua vida de sombra. Quanto mais penso, mais me parece de bom alvitre desembaraçarmo-nos dela sem escândalo. 

- É realmente penoso – disse a sombra. – Sempre foi um leal servidor. 

Os soldados apresentaram armas. Era a noite do casamento. A filha do rei e a sombra apareceram no balcão para que fossem vistos e saudados mais uma vez pela multidão. 

O sábio ficou ignorando toda essa solenidade: haviam-lhe tirado a vida.




3 de abril de 2012

BLACK MIRROR, 2011 (série britânica)


BLACK MIRROR é uma mini-série inglesa com três capítulos, três histórias independentes, situadas em tempos diferentes, que, no entanto, tratam do mesmo tema: a tecnologia da informação e o seu impacto social, ou, por outras palavras, a nossa sociedade actual, toda ela bigbroderiana, youtubista, consumista e onde o maior e mais vulgar sonho das pessoas é ser famoso. Se dessem a escolher aos dos tempos de hoje ente ser rico (a outra meta mais procurada) e ser famoso, acredito que a maior parte das escolhas recairá sobre o segundo ítem.

trailer

A forma como estes temas foram abordados, a carga dramática e o final de cada uma delas, seca (manifestando desesperança) e realista (que não diz nada de novo e apenas carimba as coisas como elas são), fazem de Black Mirror uma série impactante, de cortar o fôlego e emaranhar os nervos, mostrando-nos o pouco controlo que temos das nossas vidas, e que as coisas que julgamos úteis e necessárias só nos limitam ainda mais esse controlo.


No primeiro episódio, THE NATIONAL ANTHEM, uma história situada num hoje alternativo, a princesa britânica é raptada e a exigência é o primeiro-ministro fazer sexo com um porco em directo pela televisão.
Este episódio traz à tona questões como a censura (vemos como a tentativa de controlar a consternação do povo, escondendo-lhe determinadas informações foi frustrada pelo próprio povo), os meios de informação da modernidade e o nosso voyeurismo mórbido (que foi simplificado numa cena onde as pessoas se submetem a sofrer náuseas extremas só para assistir a um programa de sexo doentio na TV). Entretanto, apesar disso, também mostra o poder do povo e como pode influenciar as decisões, mas, lamentavelmente, apenas se preocupa com “uma bica e futebol”, no caso português.

sneak peak


No segundo episódio, FIFTEEN MILLIONS MERITS, uma sociedade futurística e consumista, onde tudo o que as pessoas podem fazer é pedalar o dia todo para produzir energia para a cidade, ganhando assim dinheiro para viver – ou sobreviver, dependendo da perspectiva (parece com a nossa sociedade?), onde a natureza está totalmente lixada, e até mesmo as frutas são sintetizadas em máquinas, as pessoas estão divididas em pelo menos cinco castas: os donos da televisão (que controlam tudo), as estrelas da televisão, os operadores da televisão, os pedaladores e os limpadores.

Se no episódio anterior se mostrou o poder do povo, neste mostrou-se a sua inutilidade, inutilidade (porque somos completamente manipulados, embora julgamos que estamos no controlo), porque somos alimentados por sonhos fúteis que vemos na caixa-mágica e nem nos damos ao trabalho de pensar se nos serve realmente. Somos compelidos a consumir e a desejar esses sonhos vãos porque nos parece que é a única maneira de nos livrarmos destas celas para podermos sermos mais importantes e menos controlados, mas não percebemos que apenas mudamos para uma cela maior.

A história deste episódio é sobre duas pessoas que se apaixonam: uma é talentosa artisticamente e a outra é talentosa filosófica e revolucionariamente e que, provavelmente, devido a sua situação social de pedalador, concluiu que a sua sociedade é vã e deve mudar. No meio disso incentiva a sua amiga a concorrer aos Ídolos… desculpem, Hot Shot, um programa de televisão clone do nosso Ídolos, achando que podia transformar a vida dela. Depois acaba ela mesma acaba por concorrer ao mesmo programa.

A história destas duas pessoas mostra como a inocência é corrompida em nome da fama e apoiada pelas mesmas pessoas que a criticam, o culto da beleza, e também os milhares revoltados ou anti-capitalistas ou anti-consumistas que são absorvidos pelos sistemas que tanto criticam sem que nada mude (por exemplo, os inúmero gurus, os incontáveis autores best-sellers de livros de auto-ajuda e críticos sociais que falam da necessidade de mudança, mas só mudam a sua conta bancária e só “criticam” para isso).
E como bónus, temos uma interpretação magistral de Daniel Kaluuya (que já citei aqui e aqui), actor que tenho vindo a admirar, e que aqui solidificou os motivos da minha admiração numa cena que me deixou em suspenso durante toda a sua duração.

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O terceiro episódio, THE ENTIRE HISTORY OF YOU, que me deixou com um gosto amargo, conta a história de um casal que vive num mundo onde tudo o que vê é gravado e catalogado. À primeira vista parece ser uma bênção, visto que, como foi logo mostrado, dá para rever perspectivas que inconscientemente deixamos escapar, além de mais permite partilhar as tuas férias com os amigos e livrar-se da inconveniência de carregar uma câmara ou da chatice não ter tido um dedo rápido no obturador ou de ter faltado a bateria ou espaço na máquina num momento crucial. 

No entanto, o facto de o ser humano possuir uma memória selectiva significa que precisa dela para o equilíbrio, as boas memórias costumamos armazenar num local de fácil acesso, as más mandamos para o fundo do armazém, procurando reprimi-las, portanto, não pode de jeito nenhum ser bom termos ao nosso alcance todas as nossas memórias detalhadas ao ínfimo pormenor, pois isso só pode tornar-se num pesadelo. E é o que acontece ao casal da história deste episódio: o marido desconfia que a mulher o trai e analisa todos os pedaços da sua memória para determinar se tinha ou não razão; entretanto, ao mesmo tempo que mantém vívida essa memória de traição, também vívida mantém a memória dos bons momentos que tiveram juntos e todos os pequenos detalhes que lhe fez amá-la. E assim, como dois sentimentos contraditórios, ele tenta gerir a situação.

A análise proposta neste episódio é bastante interessante. De uma maneira sumarizada, acho que posso dizer que o que foi se quis mostra foi: porque não há gravações da Sala Oval, Bill Clinton e Monica Lewinsky hoje são rumores, mas Paris Hilton terá sempre a sua Uma Noite em Paris.

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Em termos conclusivos: para mim Black Mirror não é propriamente uma série, pela sua linguagem cinematográfica e considerando que todas as histórias são independentes e apenas o tema é o mesmo, porém isso pouco importa, a verdade é que vai deixar-te abalado, independentemente do que achares que é. Definitivamente, merece ser visto.