14 de maio de 2011

MEMÓRIAS DE LÚCIFER - ADÃO E EVA - O Mundo Perdido - pt. 2

THEN, on ADÃO E EVA:

Deus sabia que Adão não estava de acordo com a construção da mulher, por isso fê-la uma criatura bela, resplandecente, vistosa e apaixonante.
– Eu não quero esta mulher de merda.
– Ficas com ela. Não a vou desfazer.
– Remodela-a. E quanto mais cedo, melhor.
– Muito bem, vou refazê-la com menos língua, menos persistência, em suma, com menos tudo.
– Menos cabelo, carinho, fala doce e beleza?
Afirmativo.
– Sabes, pai, que tal adiares a data da remodelação? 



NOW

Adão sentia um cheiro agradável a penetrar-lhe as narinas; nunca experimentara sensação igual. Aquele odor fazia-lhe crescer involuntariamente água na boca, sentia-se como o Arcanjo Pavlov, o Salivador. Nunca tinha sentido um perfume igual. As flores do Paraíso cheiram bem, mas aquela coisa era mais cheirosa que elas, ou melhor tinha um tipo de cheiro diferente, até provocava reflexos de fome. Aproximou-se para ver a fonte daquele cheiro e os ouvidos, que não estavam adormecidos, aperceberam-se de uma voz melodiosa a que os pássaros faziam coro e que cantava uma melodia linda e alegre. Adão sentou-se sobre os calcanhares, a ouvir e admirar o espectáculo: Eva, de pé diante de um fogão a gás, estava a cozinhar; na mão tinha uma colher de pau, com que mexia o conteúdo da panela. Era esse seu cozinhado que cheirava tão bem. Cantava, tendo como coro os pássaros mais musicais do Paraíso, os beatles, uns mozarts e algums mamadjombos, e alguns querubins apaixonados pela bela voz dela, que acompanhavam-na com harpas e liras, enquanto outros dançavam, tudo coreografado pelo anjo Disney. Era um espectáculo digno de um Óscar, quer dizer... de um deus.

Quando Eva acabou a canção, Adão irrompeu em aplausos, a gritar: Bis! Bis!
Eva deixara-o terrivelmente maravilhado. Aproximou-se dela:
– Que estás a fazer? Cheira tão bem!
– Um guisado; e sabe também tão bem.
– Para que serve?
– Ora! Para comer.
– Posso experimentar?
– Experimentar o quê? Estás xoné. Só se me deres a tua perspicácia.
– Porra, Eva! Não sejas má. Achas que podes comer esta merda sozinha?
– E tu queres comer a minha merda?
– Desculpa, foi uma força de expressão. Mas... queres a perspicácia?
– Quero!
– Venha lá então o guisado e fica com ela.
Negócio feito. Trocaram. Adão, movido pela gulodice, aceitou a troca. Deixou a perspicácia com Eva em troca de uma bruta congestão, por aquilo ser uma novidade no seu estômago e ingerido em quantidade não moderada.

– Vossa Magnificência – relatei -, temos sérios problemas com a estrutura da ordem. Correm boatos de que o sindicato dos arcanjos está a preparar uma greve...
– Uma greve?! – admirou Deus. – Por que raio de motivo?
– Ainda não sei bem. Tudo começou na sede da DIABO (Direcção Interna dos Artistas das Belezas Ornamentais) e alastrou-se até à sede da SATANAS (Sociedade Amiga de Todos os Animais Não Alados e Semelhantes). Parece que os répteis da SATANAS, fartos de comer poeira, foram queixar-se à DIABO para que mudasse a decoração do solo. E, ao que tudo indica, quando a DIABO estava a modificar o solo, o vosso filho, Adão, mandou parar a obra, com palavras ordinárias, como costuma fazer, dizendo que o alvará da DIABO estava fora de prazo e que não havia o comprovativo do licenciamento do projecto. E quando o arcanjo Olmsted, chefe da DIABO, lhe apresentou a licença, disse-lhe que a fosse meter naquele buraco...
– Que buraco? – perguntou Deus.
– Aquele buraco – expliquei, gestualizando para Lhe fazer perceber… mas não percebeu. – Posso ter a liberdade de chamá-lo pelo seu nome? – Deus fez que sim. – O buraco do cu.
Deus riu-se, divertido.
– Esse Adão! Ah, esse Adão! – disse. – Continua.
– O arcanjo Olmsted foi queixar-se ao Sindicato, acompanhado de muitos outros que já tinham sido ofendidos por Adão, mas que se calavam apenas porque sabiam que não haveria justiça, sendo ele o senhor de tudo.
«O Sindicato está furioso, exige ao parlamento novos decretos que afectem igualdade para todos, com o fim a evitar certos enlevos a que alguns têm direito e outros não, como no caso de Adão que não pode ser contestado e está a ameaçar a ordem das coisas. Por que carga de água, pergunta o Sindicato, devem os répteis continuar a comer poeira só porque Adão quer o solo seco e sem mais enfeites? Os répteis habitavam a zona florida, mas ele expulsou-os dali, alegando que lhe estavam a estragar o jardim; agora que foram para a zona deserta, ele não quer que essa zona seja melhorada.
«O Sindicato mandou uma queixa ao parlamento, acompanhada de um abaixo-assinado, mas quando Adão tomou conhecimento disso, ameaçou dissolver o parlamento porque a Constituição lhe permite isso. Os parlamentares, com medo da decisão de Adão, decidiram levantar a queixa, até porque ele fez novas nomeações no Templo Supremo da Justiça. Os parlamentares, impotentes, abandonaram o parlamento, advogando falta de razão para lá estarem se não podem cumprir as suas funções.
«Sentindo-se impotente, o Sindicato deu um ultimato: ou resolve Vossa Magnificência a questão de Adão ou abandonam os trabalhos do Paraíso.
«Vossa Magnificência, está tudo em risco; se essa greve começar, vamos ter atrás dos anjos os arcanjos, os querubins, os serafins, os vinte e quatro anciãos, as quatro criaturas hediondas e até mesmo o vosso cordeiro...»
– O quê? O meu cordeiro?
– Sim! Não sabíeis que Adão prometeu a lã do cordeiro sagrado a Eva? Imaginai a vergonha, o vosso cordeiro todo tosquiado. E, pior que tudo, Adão até prometeu a Eva um casaco feito com a pele do cordeiro.

– Adão já está a passar das marcas.
– Ah! Agora estais a notar? Tendes de tomar uma decisão. Mais vale tarde que nunca...
– Mais vale a calma do que... Vou mandar Adão para uma viagem de quinhentos séculos.
– Quinhentos quê? Isso não pega, é apenas uma cura temporária, se me permitis dizer, O mal corta-se pela raiz. Poderei dar-vos um conselho? Lembrai-vos daquela árvore do meio do jardim, a Árvore Morta? Pois bem... Poderei ter a liberdade de vos falar ao ouvido?
Ele anuiu e aproximei-me.
– Que tal usardes aquela árvore como bz... bzz... bzzz...
– Boa ideia – gritou Deus. Depois emendou: – Excelente ideia!
Uma coisa que admiro em Deus é que o gajo não é de demoras, começou imediatamente a preparar a execução do plano, do meu plano, outra vez.
– Vossa Magnificência – chamei. Voltou-se para mim. – Como paga quero o lugar do porta-estandarte... Não. Quero o de vice-governador.
– Pretendes que devo exonerar Cristo do seu cargo?
– Não, Vossa Magnificência! Pretendo que me promovais.
– Lúcifer, vai-te matar, és demasiado ganancioso.
– Ouve lá, Eloim, e ouve muito bem – disse eu, já não pensando na praxe -, tu e o teu filho maçaram-me por muito tempo. Trabalho como burro, sob insultos pelos dois lados; agora chegou a hora de me recompensares dos males que me fizeram tu e o teu filho; sem dizer que não me reconheces pelos meu projectos.
– Meu caro Lúcifer... – começou Deus com calma para depois explodir: – Nem o lugar do soldado raso terás. Quem quer ser o primeiro será o último, estarás na mais baixa posição que as minhocas que perfuram a terra.
– Sabes, Eloim – disse eu -, vai pro Inferno. – O sangue subiu-me à cabeça. – Inferno?! Não, não vás para lá, vou lá eu. Mais vale morar no Inferno do que servir de alvo no céu. E juro-te que farei um reino melhor, onde a liberdade será a regra primeira.
– Vai-te matar, Lúcifer. Tu assim o quiseste, assim o terás; tudo o que acontecer de desagradável, a partir de agora, irá para cima dos teus ombros; para começar, a expulsão de Adão do Éden e as suas consequências.
– E isso me importa? Pensas, Eloim, que irei para o Inferno sozinho? Não! A comissão de greve, o Sindicato dos Trabalhadores, o ESPIAO (Empenhado Serviço de Protecção da Igualdade dos Animais e Outros), a classe baixa, a todos mobilizarei para levar comigo... E aviso-te, como amigo, se não expulsares a mulher do teu reino, terei mais pessoal no meu.
– Por quê? Como assim?
– Não vês que os teus perfeitos anjos estão sempre a brigar por um sorriso dela?
– Os anjos que fizeram isso irão contigo.
– De bom grado. Quanto mais gente, maior a festa. E, meu Deus, em nome dos longos anos como teu assistente, e dos bons velhos tempos, quando ainda não tinhas todo este ego, se algum dia precisares de mim, sabes onde me encontrar.
Saí do seu gabinete, deixando-o a passear de um lado para outro, preocupado... não comigo, é claro.

– Adão, querido, vem ver! – chamou Eva.
Adão correu logo. Depois de alguns dias perto de Eva, já não conseguia afastar-se dela por muito tempo.
– Ver o quê? – perguntou
– Não estás a ver as frutas sumarentas, redondinhas e deliciosas naquela árvore?
Ainda não as tinha visto. Quando Eva lhas apontou, franziu a testa e dobrou a ponta do nariz, num gesto de análise.
– Não me vais oferecer uma? – perguntou Eva, ao mesmo tempo, convidando.
– Não, não vou – respondeu Adão, secamente, recusando a oferta.
– Por quê? – quis saber Eva.
– Porque esta história não está bem contada – disse Adão, que tinha a razão aguçada porque não a vendeu a Eva, embora ela também não a quisesse, porque lhe estragaria os prazeres.
– Estás a duvidar do pai? – ralhou Eva.
– Não, mas estou a fazê-lo dos servos do pai.
– É a mesma coisa. Achas que um servo do pai teria a ousadia de fazer algum mal ao Paraíso?
– Por que não? Da forma como o Paraíso está, todos lutando para alcançar a supremacia, ou a liberdade, sei lá, dá na mesma, esqueceram-se já do que é gratidão. Não me faria surpresa se isto fosse obra de qualquer um desses arcanjos. Mas vou tirar o pano a isto.  

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