4 de maio de 2011

SETE FACES DO DR. LAO, AS, 1964 (7 Faces of Dr. Lao)


Estava à espera de uma comédia do género Balbúrdia no Oeste, algo sem sentido e com muita piada, quando me surgiu uma coisa muito diferente.

O uso do circo como elemento chave, como um terreno onde a sátira e a realidade se confundem (aliás, como referiu Erasmus, não é por acaso que só os bobos da corte podem falar ao rei da forma que bem entendam), e portanto estique as fronteiras do credível, podendo parecer fantasiosamente real, foi o ponto mais forte do fabulista, fazendo-me lembrar constantemente d'O Imaginarium do Dr. Parnassus (que vi primeiro) e saber onde Gilliam fora buscar as referências.

Eis As Sete Faces de Dr. Lao (chamado na tradução pt-pt, O Misterioso Dr.Lao, mas aqui prefiro a pt-br) e a sua história: uma cidade do oeste americano é quase toda comprada por um fulano, passando a restar às pessoas como hipótese deixar a cidade, e os únicos oponentes desse comprador é um jornalista e uma bibliotecária, e que, apesar de tudo, não conseguem abrir os olhos do povo. Eis então que surge na cidade um chinês misterioso, com um circo cheio de figuras lendárias, que leva as pessoas numa viagem em descoberta de si mesmas.

spoiler visual

Os efeitos especiais em stop motion não são nenhum King Kong, mas lá conseguem aguentar para dar ao filme o necessário. Os diálogos são soberbos, poéticos (não chegando a um Alexandre Herculano) e filosóficos, acompanhando cada metáfora ou alegoria que o filme mostra. Sim, o filme é um conjunto formado de partes, partes que tentam retratar cada um dos aspectos da vida e dos hábitos humanos. Tem alguns discursos muito à americana, mas que são desculpáveis pela época, por exemplo, quando um deles se refere a um índio mais ou menos neste termo: os avôs deste viveram aqui antes do homem branco sequer pensar em conhecer esta terra; agora se nós formos embora o que vai ser deles? Sim, aqui não se lembraram que o índio não dependia do homem branco e portanto poderia viver novamente sem depender. Infelizmente esta atitude dos americanos de tomar as dores dos outros, o que desgraça ainda mais o protegido, não mudou nem um bocado.

Como tinha começado a dizer, o filme tenta retratar cada um dos aspectos da vida humana, através de sete personagens fantásticas; sem falar do diálogo ficando apenas pelas personagens, temos o filme completo, ou seja estas personagens podiam desfilar apenas com uma placa com o seu nome, que já fariam sentido:

  • Apollonius de Tyana, cego que vê o futuro (com o fardo adicional de só saber dizer a verdade).
  • Pan, o deus meio homem, meio bode, que encarnou depois o luxurioso fauno dos romanos, e aqui representa o nosso desejo, a nossa libido, e como isso não é um dos aspectos secundários da nossa vida.
  • Médusa, a górgona que transforma quem a olhar em pedra, que talvez seja uma alegoria à curiosidade mórbida e à cegueira da busca incessante que nos deixa mais frio e afastados da nossa humanidade, tornando-nos simples autómatos.
  • Merlin, o mágico, que tem o poder de criar e não apenas de iludir, mas que precisa de crédito dos outros e da sua atenção para poder mantê-lo vivo.
  • Serpente gigante, que é nada mais do que, provavelmente, a serpente que enganou Eva, representado um espelho da nossa alma, os nossos próprios desejos e o nosso egoísmo.

As outras duas faces do Dr. Lao só fazem sentido pelo contexto do que são mostradas e pelos diálogos. Uma delas é o próprio Dr. Lao, um filósofo com sete mil e trezentos e tantos anos (mais velho que a humanidade segundo os judeus), e o Abominável Homem das Neves, que tanto tem de abominável como de tímido e discreto. Um exemplo da filosofice do Dr.Lao: ele pesca num lago seco, onde não há peixes, por isso não tem necessidade de usar isca.

Ok! Filosofias, sátiras e fábulas à parte, As Sete Faces de Dr. Lao, simplesmente como filme, é por vezes inconsistente, como no caso de um par de bêbados a cambalear que de repente ficam lúcidos, ou da criança com duas mães que sai à noite sem ninguém dar conta, e não investe muito em determinadas personagens, conferindo-lhe apenas o carácter necessário para o desenrolar da história.

A ideia central do filme talvez fosse isto: não viver nos extremos, nem do idealismo nem do pragmatismo absurdo, mas procurar os meios; e, por vezes, às pessoas são mais porque ficaram desiludidas, mas continuam a ser más porque as deixamos e encorajamos (por medo de sermos politicamente incorrectos, por medo de uma reacção exagerada, enfim, sempre por medo de algo).

As Sete Faces do Dr. Lao é um filme tremendamente divertido, pode ser visto tanto em modo simplex como complex, que funciona sempre. Não se deixem enganar pela sua idade (considerando o universo fantasioso e o estado actual dos efeitos especiais), o filme é tão sábio quanto o seu protagonista. E como mais-valia tem a boa  representação do actor principal, Tony Randall.
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