11 de março de 2011

MARY E MAX, 2009 (Mary and Max)

Mary and Max… a melhor comparação que encontro para o filme é o tango, não a música, mas a dança, ora com movimentos calmos, calculados e sensuais, ora com enérgicas, fugazes e impacientes.

Eu esperava uma história a Disney quando comecei a ver o filme, alguma fantasia como Coraline, principalmente porque ambos são em stop-motion e ouvi falar de ambos na mesma altura, e a surpresa foi tanta e muito positiva quando o filme nem passou por perto. Contado por um narrador é uma animação... "cadavérica"... feita para adultos.

Mary e Max é um filme de amor, o melhor que vi este ano (ainda estamos em Março, espero ver melhores ou pelo menos outros à altura até ao final do ano), o amor entre duas pessoas, um senhor de meia-idade (44 é meia-idade?) e uma menina de oito anos, três meses e nove dias, que, apesar de não se conhecerem, têm muito em comum: falta de amigos, uma específica série de desenhos animados e chocolate. Mas isso é só o ponto de partida para a torrente de emoções que se despencam ao longo de hora e meia. Com um bom ritmo, uma fotografia pálida, e a animação dos personagens um tanto tosca, sem referir a banda sonora que por vezes atribui alguma teatralidade ao filme (destaco – spoilers! – a cena da primeira carta de Max e a que antecede a ressurreição de Mary, simplesmente soberbos), todos esses elementos destacam o lado “anormal” dos personagens e do tema a tratar. Julgo que a história funcionou melhor assim do que se tivesse uma foto mais convencional e colorida e animação fosse mais vivida. Também note-se que a própria fotografia mostra dois mundos diferentes, o mundo de Max é todo ele cinza, ou seja, irremediavelmente sem remédio, enquanto o mundo da Mary é mais animado, é castanho, significando perspectivas futuras.

O filme trata do desequilíbrio social, congelando a parte do amor, dos que não se conseguem encaixar, dos marginalizados ou auto-marginalizados que não conseguem ser normais; e todos os normais do filme tinham a sua anormalidade, como foi mostrado: o vizinho era homofóbico (na verdade agorafóbico, como a Mary depois aprendeu); a mãe era cleptómana e bêbada; o pai, que tem um trabalho monótono, praticava taxidermia, para curar a sua monotonia, quando na verdade só a agrava; Damien era gago (a sua revelação final não se foi intenção do realizador mostrá-lo com anormal, o que eu apontaria como um erro, ou como uma espécie de epifania, o encontro libertador consigo mesmo). São todos pessoas normais.

No entanto, porque Max é um "aspie", sofre de síndrome de Asperger, ou seja tem dificuldades em exprimir e interpretar emoções, tendo uma mente muito literal, e não compreendendo as interações sociais não faz com que precise de ser arranjado, ou que seja anormal, como os outros pretendem, pois é tão normal como qualquer um.

Vemos que praticamente, como diria Sartre, o inferno são os outros, todos os problemas destas pessoas é porque, de algum modo não se encaixam no padrão social, e não respondem ao que lhes é exigido, diluírem-se na normalidade. Por exemplo, a marca da máquina de lavar pratos da Vera é “Dishlex”, que remete à dislexia; os livros que Ravioli lê são todos de auto-ajuda e um deles, posso dizer, foi escrito por Dale Carnegie (uma autoridade nessa área); jogam os estereótipos como parte da do processo da normalização. Note-se que Max consulta um psiquiatra, e a presença deste é tão constante no filme, como o nome de Jesus numa missa de Natal, e eu suponho que isso foi intencional, para mostrar que os psiquiatras e a normalidade são hoje, respectivamente, os sacerdotes e religião moderna. O mendigo por exemplo, que tenta vender abraços, conselhos, beijos, até no final perceber que ninguém quer isso, visto que ele continua onde está, acabando por se contentar por pedir as pessoas para guardarem o seu dinheiro (bem, a sociedade não é assim tão honesta).


trailer

E a razão de o realizador usar muito da escatologia é algo que não entendo. Temos durante o filme todo coisas a saírem ou a entrarem pelo ânus, será que quis dizer com isso que embora pretendemos a normalidade escondemo-nos de coisas normais? Por exemplo, houve um momento em que comparou um peido com a honestidade. Ou uma das palavras preferidas de Max ser “testículos”, ou a fruta “cumquat”, não são provocações à normalidade e para deixar os normais desconfortáveis, visto que ele está a escrever para uma menina de mais ou menos onze anos? E assim também temos o tema da pedofilia visitado, embora não tão aprofundado. Podíamos repreender – spoilers! - embora o façamos, a Vera de não querer que Max comunique com a filha?

Mary e Max é soberbo, começa por ser uma comédia inteligente, mas como qualquer boa tragédia(?), prende-nos, faz-nos gostar dos personagens, leva-os a superarem-se para logo depois fazer uma viragem para o ângulo oposto, e deixarem-nos desconfortáveis. Houve uma cena, lá perto do fim, com a Mary, tão carregada de tensão e magistralmente dirigida - e não consigo imaginar música mais perfeita para ela - que me deixou de respiração suspensa e aperto no estômago, e só isso podia valer o filme todo.

spoiler visual


Como não consigo seguir uma linha de pensamento sequencialmente clara, vou terminar aqui. Acredito que há mais no filme do que aquilo que consegui captar, embora não me tenha referido aqui a todos os elementos alegóricos que encontrei, ou pelo menos, há mais referências que me passaram despercebidas, no entanto, o que ficou é muito intenso. E sem ver o filme pelo lado analítico das mensagens, cinematograficamente falando, é um bom filme e hora e meia bem aplicada, banda sonora bem escolhida, fotografia adequada ao tema, em suma: uma obra-de-arte.
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